26 de novembro de 2004

Resto

Dia desses estava na cantina esperando o horário da minha aula. Vi uma mulher que já vinha observando há meses. Ela estava sempre muito suja, vestida com trapos e muito, muito malcheirosa. Por vezes eu pensei: “Poxa, será que ninguém vê que essa mulher não pode ficar aqui na cantina. Que fedor! Que nojo!”. Sabia que não era funcionária da cantina. Mas ela passava pelas mesas e recolhia os copos plásticos, guardanapos, latinhas de refrigerante. Não entendia o porquê daquela atitude até este dia. Estava conversando com uma amiga sobre nem me lembro mais. Isso pouco importa diante do que os meus olhos veriam segundos depois. Será que assuntos como final de semestre, provas, formatura, sexo, rapazes e casamento são mais importantes que o problema social que acabaria de presenciar? Será que minha vidinha mesquinha diante de uma sociedade mais ainda, é mais importante que aquilo? Aquilo. É assim que o mundo vê o que eu vi. O que vi e senti como se fosse culpa minha e da minha amiga. Que nem reparou, porque ela continuava a falar “coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar” enquanto meu olhar filmava tudo como um repórter com sede de denunciar ao mundo o que ele fazia com seus “cidadãos”. A mulher passou por nós duas e sentimos, mais uma vez, o fedor que aquele corpo, já velho, exalava. Ambas fizemos cara de meu-Deus-que-fedor, juntamente com todas as demais pessoas que estavam perto. Enquanto eu não mais prestava atenção na minha amiga, a senhora fez o que sempre fazia. Recolheu os restos das mesas e levou-os ao lixo. Voltou e eu continuava a segui-la com meus olhos curiosos e preconceituosos. Talvez tenha até escondido o celular que segurava nas mãos. A dúvida acerca do porquê que ela fazia aquilo ainda me prendia àquela cena. Olhava aqueles olhos que eu não conseguia entender. Por vezes pensei que ela fosse louca. Sei lá. Apesar da aparência fétida, era educada com todos e sem dúvida solícita. Quem trabalharia assim por nada? No que ela voltou de jogar o lixo fora, passou numa mesa perto de nós e dessa vez pegou apenas uma latinha de Coca. E diferente do ato anterior, ao invés de jogá-la fora, caminhou para um pouco longe da cantina e quando já estava fora da visão de muitos levou à boca o resto, que eu nem sei mais se tinha. Assim, naturalmente como se fosse ela mesmo que tinha comprado.Naquele dia entendi que ao ajudar os funcionários da Cantina do “pastor” (belo nome não é?) ela buscava em cada resto, um pouco de alimento para saciar a fome de não sei quantos dias. O resto para o resto do mundo. Será que os meus olhos eram mesmo “como um repórter com sede de denunciar”? Ou será que nada mais eu faria além de passar apenas alguns minutos, se muito fosse, pensando como seria difícil a vida daquela mulher? Hoje, depois de tantos dias passados do ocorrido, ainda a vejo na cantina fazendo a mesma coisa. Hoje, depois de tudo, nada fiz. E talvez nada faça se ainda hoje não mudar a apatia que é a minha vida. No que diz respeito ao meu papel como futura engenheira e cidadã na sociedade em que vivo. Apatia que contamina e cega pessoas como eu, minha amiga, as pessoas da cantina, da Universidade e das cantinas e Universidades do mundo. Apatia que nos cega e mata de fome os que não estudam em universidades, que não vão ao Multiplex, que não conhecem o BicMac, que não compram carro, que não usam o MSN, que não usam xampoo , que não usam talheres, que não almoçam na casa da vó, que não têm vó, nem mãe, nem pai, nem nada, que não sabem ler, que dormem no chão, que no frio sentem frio, que no calor não compram uma água mineral, que no aniversário choram, que no Natal pedem, que meio-dia nada comem ou que numa tarde como aquela comem restos.E você? Será que percebe o que acontece ao seu redor? Na sua rua, no seu bairro, na sua cidade? Ou será que percebe e faz como eu? Que vê, sente, mas só permanece absorto em pensamentos que não se transformam em ações, em nada?


Karine

25 de novembro de 2004

Grávida?

Nem bem eu entrei na Universidade e já dei de cara com uma greve. Aqui na Bahia, Greve em Universidades públicas é um poço escuro e você nunca sabe quando vai cair nele. Pode ser no início do semestre quando você acabou de voltar das férias. Quem sabe na última semana quando você tá doido para ir embora? Mas o pior é quando é no seu último semestre. Eu já estou no último semestre e há rumores de greve no ano que vem. Os grevistas que me desculpem, mas ainda bem.
Mas quando eu era ainda caloura, no sentido de que eu não tinha feito Fenômenos (matéria do 6º semestre), eu peguei uma greve. Tudo bem, antes que alguém fale, eu não sou contra greve. Afinal, através delas os estudantes e trabalhadores alcançaram e alcançam muitos benefícios. Mas que greve é um saco é. O governo deveria consertar as coisas antes que pensassem em fazer uma. Mas as coisas aqui são assim. Quem não chora, não mama.
Como eu moro em outra cidade, liguei para minha mãe e avisei que estava voltando e o motivo. Pronto, sem problemas. Liguei pra meu pai (percebe-se que meus pais são separados) e disse:
- Pai tô de greve.
- Tá o quê menina?
- Isso mesmo que o senhor ouviu.
- E você fala assim nessa calma?
- Oxe, o senhor quer que eu fale como?
- Karine!
- Meu pai, tem coisa mais normal que isso?
- Normal pra quem?
-Meu pai que cabeça de velho é essa? Isso acontece aqui sempre. Não vê na televisão não?
- Claro que eu vejo. Mas com você?
- Meu pai que besteira. Que alarme por causa de uma coisa tão simples.
- Eu não tô acreditando...E agora? E a Universidade? E seu sonho? Você vai fazer o quê?
- Fazer o quê? Voltar pra casa e esperar.
- Não é possível. Com quem foi Karine?
- Que pergunta! Ora, com a Universidade toda. Claro que tem gente que não quer participar e não faz. Mas a maioria que eu conheço participou.
- O quê? Karine, você não era crente?
- Era não meu pai, sou. Meu pai o que é que ser crente tem relação com isso? Eu hein? O senhor bebeu?
-Você tá grávida e nem sabe de quem é e eu é que bebo?
- Hãn? Grávida? Eu disse: eu tô de GREVE!.
- Ah, Greve...Que susto.

Karine

Rumo à casa dos 74 kg!!! Desce, gráfico, desce!!!